sexta-feira, 3 de outubro de 2014

POR UM MÍNIMO DE HUMANITARISMO NO COTIDIANO COMPLEXO


Na rodoviária de uma cidade do Planalto Norte Catarinense, à noite, um homem, cinquentão, dormia no chão gelado, tremendo de frio, com as mãos no meio das cochas. Um fiscal o acordou aos chutes. Fídias foi lá. Ignorou o fiscal. Tirou a jaqueta e deu ao homem e um pouco de dinheiro sugerindo-lhe beber um café com pão. O fiscal olhou-o, morto de vergonha. O homem saiu por ali, tonto. Fídias perguntou-lhe onde iria dormir. Ele olhava as estrelas e pediu que não se preocupasse. A noite toda Fídias ficou pensando: - onde vai dormir aquele homem!
Não é só a pobreza, porém, que incha de amargura as almas humanas. Ele se lembra de um endinheirado coronel da polícia, de uma dessas capitais, que lhe procurava em busca de socorro existencial: era “traído” pela esposa, fazia que não sabia. E lhe perguntava:
“- Se eu deixá-la, professor, o que vai ser de mim? Meus filhos sumiram no mundo, só tenho ela para me ouvir e deitar. O resto da minha vida é só estresse, violência, mortes. E eu já estou ficando velho e doente. Tenho que fazer que não sei. Temo me matar”.
Fídias lhe deu um conselho que havia dado a uma sobrinha, por volta de uns 35 anos atrás. Disse-lhe que, muitos motivos levam alguém ao suicídio. Mas há uma penúltima coisa a fazer, esta pode salvar a pessoa da depressão e da morte. Então, tente realizar esta penúltima coisa, pois o máximo que pode ocorrer é a pessoa morrer. Mas ela não já ia morrer!?
No caso do coronel, uma outra mulher pode mudar todo o quadro existencial dele para melhor. Sem esta outra mulher, ele caminha melancolicamente para a morte; sem ter tentado nada fazer. Uma outra mulher, dar-lhe-ia cinquenta por cento de probabilidade de adocicamento da vida. Paralisado, só uns dois a três por cento de probabilidade de sair do fel nosso de cada dia.
Quinze anos depois, Fídias o encontra num restaurante, com uma nova mulher e um filhinho.
Mais ou menos parecido foi o caso da sobrinha dele, que está viva, e namorando, 35 anos depois da ideia fixa de se matar.
O cotidiano complexo é assim, produz coisas fantásticas, significativas, e destroçantes, mortificantes, ontologicamente paralisantes. Fídias sempre resistiu a esses riscos de paralisia existencial e espiritual.
Ainda bem que ele fez uma filhinha e brinca muito com ela. Sentam-se no chão, fazem casinhas, piuí, piuí, corre um atrás do outro, gargalham, dançam, cantam, ela já sabe a música toda que ele canta muitas vezes para ela dormir:
“A lua girou, girou
marcou no céu um compasso.
Eu bem queria fazer
um travesseiro dos meus braços”.
(Milton Nascimento)

E ele também já sabe a musiquinha que ela canta, dança, pula, pedindo-lhe para cantar:
“Piuí, piuí, piuí abacaxi!”

(Autor: Fídias Teles)


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